25 de fev. de 2009

O PECADO E O JUÍZO - parte 1

O Pecado e o juízo - Outros carnavais: Veneza e Salvador
Por Alexandra G. Dumas

Veneza, Salvador...
Frio, silêncio, música erudita, fantasia, máscaras, muita gente na rua, a folia...
Cerveja, música alta, calor, dança, batuques, muita gente na rua, a folia...
Oposições e semelhanças.

Para começar uma mesma festa sob um mesmo pretexto e ocasião; o espaço da rua e da praça como cenário; o mesmo motivo para celebração: o carnal, o vale, o tudo, o entrudo, o carnaval...

O nome e suas especulações: do latim medieval carnem levare ou carnelevarium: dias mais permissivos que antecedem a quaresma – período de abstinência de carne. São os dias de alívio para entrar na “lei seca”, privação de carnes, da carne... Um esbaldar-se para agüentar os quarenta dias seguintes de penitência. Esta prática é recorrente em diversas religiões. Esse nosso carnaval vem da religião católica, mas este bebeu na fonte de outras festas, profanas, populares, pagãs da Antiguidade, ou seja, somos e viemos mesmo de outros carnavais... É para suportar a abstinência futura que fica valendo todo o excesso. Sem pecado e sem juízo.

Histórias e etimologias à parte, aqui estou para mais uma vez tentar entender o Brasil, na situação que vivo atualmente, estando de fora dele, no exílio escolhido para o meu doutorado em Paris. Depois de passar pela lavagem da Madalena, (ver: http://www.soniavandijck.com/alexandra_dumas.htm) agora chego ao ápice da brasilidade, o carnaval.

Para os que ainda não me conhecem, sou visivelmente brasileira - mulata acaboclada- e caricaturalmente baiana: sei sambar, conheço o candomblé e jogo um pouco de capoeira. Imaginem o que é para uma baiana caricata, depois de sete meses em Paris, imersa em roupas, livros e frio ficar de fora da folia e ainda recebendo emails de amigos, divulgação dos ensaios, dos shows, das feijoadas, das camisas, dos camarotes, dos alternativos, das discussões sobre o carnaval baiano...

Diante de tais apelos, convites e notícias do carnaval soteropolitano, estando no rigoroso inverno e quase inexistente carnaval parisiense, decidi não cortar os pulsos: saí do chão e resolvi me aventurar numa viagem de excursão saindo de Paris, rumo à Veneza.

Duzentos e vinte euros foi o preço desta dose única, remédio antimonotonia que envolvia hospedagem e o transporte de buzu: 14 horas de Paris à Pádua, onde nos hospedamos, até por que ficar em Veneza neste período não é para qualquer um, muito menos para uma estudante bolsista do governo brasileiro. Até me senti culpada por gastar os euros vindos do real brasileiro nesta empreitada individual, mas para mim e para vocês justifico: sou uma pesquisadora dos festejos populares e nada mais justo, aliás, justíssimo que eu e vocês cidadãos fizessem este investimento. Retribuirei com todo empenho que já dedico à minha tese. Mas, como carnaval não é época para culpas e desculpas, vamos à festa...

O PECADO E O JUÍZO- parte 2

Pois então... O carnaval baiano já bombando, eu imaginando o vai-e-vem da Barra - Ondina, o esquente das discussões apimentadas, freqüentes e necessárias sobre camarotes, cordas, o dinheiro, o lucro, a democracia, o público, o privado, o novo, a tradição, tudo isso regado a cervejas e acarajés... A escolha da fantasia, da programação, do tênis, do short, das camisas...

Enfim diante da necessidade de compensar a minha ausência no circuito Dodô, Osmar, Batatinha, Curuzu, Garcia, da pipoca de Daniela Mercury e do 2222, do arrastão da Timbalada, do samba do Alerta Geral e tudo o mais que tem ou se inventa de tradicional no chão soteropolitano, eu fui. Fui e vi Veneza. E não tinha outra! O destino tinha que ser Veneza. Se é para ir a um carnaval, que seja logo o mais conhecido.

Agora vos conto como foram os meus dois dias na “abertura do carnaval” da cidade do mar azul. E lá fomos nós: cinco brasileiros amigos e mais o resto do mundo, franceses, árabes, asiáticos, que habita em Paris, no total de quarenta e quatro pessoas no buzu da excursão.

A saída foi tranqüila, o transporte confortável... A chegada não menos. Lá estamos, sábado, dia 14 de fevereiro. Dia da abertura do evento.

Acomodados em Pádua (Padova, em italiano), cidade próxima, partimos para Veneza, quarenta minutos de trem. Não sabia direito o que poderia esperar do carnaval veneziano. As tradicionais imagens indicam o par, rua e máscaras.

Na descida da estação, diante de uma praça, às margens de uma das ruas de água, os canais, a muvuquinha já mostrava seus dedinhos: lojas de máscaras, pessoas oferecendo o serviço de maquiagem facial, gente mascarada e fantasiada. O meu olho dava um 360 º no espaço. Vontade de ver logo e ver tudo. Mas essa lição já consta no meu manual de viajante e pesquisadora: não se vê tudo de um lugar nunca, ainda mais este lugar tendo tantos becos e ruas, e tantas coisas escondidas ou travestidas nestes dias que podemos ser ou fazer muito mais do que somos no nosso cotidiano.
Os primeiros personagens se anunciam: o palhaço e as crianças. A caminhada prossegue e os outros personagens nos tomam, em quantidade e qualidade, em glamour e beleza. A tônica do trajeto é a marchinha, não a canção, mas o marcher, o caminhar, o andar em pequenos passos, pois as ruas estão cheias de pessoas fazendo a mesma coisa: andando, vendo, se mostrando, fotografando...

A rua não é caminho para chegar a algum lugar. Ela é a chegada nela mesma. E isto resume o ponto central do carnaval veneziano: a espetacularidade estabelecida em espaços definidos e transitáveis do objeto a ser admirado e o outro, a platéia que vê e fotografa. Quase sempre o elo entre o espetáculo e a platéia se afirma pelo glamour. São as roupas que reproduzem certo tom de nobreza e a “plebe” que fica em seu entorno para registrar com o olho mais atuante nos dias de hoje, que é máquina fotográfica.
É impressionante a quantidade e a importância de máquinas fotográficas no circuito da festa.

O PECADO E O JUÍZO - parte 3

De início, eu ficava um pouco constrangida em meter a máquina na cara das pessoas, achava invasivo. Em seguida, descobri que a quantidade de máquinas ao redor do fantasiado é uma medida do seu sucesso. Era só mandar um scusa, grazie e ficava tudo bem para todos nós.

Mas a presença da máquina fotográfica no carnaval de Veneza, para mim, revela uma das principais características da sua natureza: a contemplação. É uma festa que se organiza para o olhar: o ver e o ser visto. O principal elemento de atração é o fantasiar-se com glamour, como uma representação do figurino mais próximo de tipos aristocratas e nobres e máscaras da commedia dell’arte, tipo de teatro italiano muito popular entre os séculos XV e XVIII que era apresentado nas ruas e praças públicas.
Estrategicamente, os fantasiados que transitam em grupos ou sozinho, andam, param, fazem gestos e pousam para o olhar dos que circulam pelas ruas principais.
Nosso trajeto tinha uma meta: conhecer a cidade e chegar à Praça San Marco, marco do carnaval veneziano. É lá onde acontece grande parte da programação oficial: desfile, apresentação de grupos de teatro e de música.

No caminho, íamos nos encantando com o empenho alegórico das pessoas- personagens. Mas, eu, particularmente, ficava mais atraída pelas crianças, que, pela escolha dos pais, óbvio, em muito reproduziam os costumes usados pelos adultos ou usavam os singelos e impagáveis palhaços.

No meio de tudo isso, e para ser turista mesmo no carnaval, andamos de gôndola, comemos pizza, tomamos sorvete, compramos souvenir e, claro, adquirimos e colocamos as nossas máscaras. Escolher a sua máscara é viver um pouco o que o espetáculo da fantasia no carnaval nos oferece, temos a liberdade de escolher o nosso próprio papel, sem diretor e sem produtor para determinar nada. Eu escolhi uma que deixasse a minha boca livre pra falar, comer, beber... Já que depois vem a “quaresma”.

Seguindo o nosso roteiro turístico, entrando em beco e nos perdendo, chegamos à Praça San Marco. Na programação oficial constava um desfile de crianças. Chegamos atrasados e não vimos, mas sem problemas. Lá ficamos admirando a grandeza e a beleza da catedral e da própria praça.

Anda, vê, fotografa, anda de novo e paramos diante de um tradicional café, inaugurado em 1720, o Florian. Tradicional, lindo e caro. Pegamos uma rápida fila e entramos. Lá dentro, parecia que estávamos dentro de uma cena, em cima de um palco. As pessoas ou personagens estavam lá sentados, exibindo-se, tomando chá e do lado de fora, diante de uma janela de vidro, várias câmaras fotográficas, filmadoras e gente olhando. Sentamos e pedimos o nosso chocolate de dez euros− maravilhoso por sinal − olhamos, fotografamos e saímos. O curioso é que neste lugar, mesmo não estando fantasiada, eu tinha a sensação de ser também uma atração. E gostei de me sentir importante e visível.
Mas o alvo era mesmo as madames e senhores com seus trajes estilo novela de época da Rede Globo.

O PECADO E O JUÍZO - parte 4

A programação oficial seguia com concertos e apresentações de grupos. Mas o cansaço bateu e a vontade de voltar para o anonimato também. Trem, Pádua, casa.

Dia seguinte, 15 de fevereiro. Ao meio-dia chegamos à praça para ver a “descida do anjo”. Não sei bem do que se trata, mas parece que é um dos pontos altos da festa. Literalmente, pois é a descida de um “anjo” preso num cabo de aço, do alto de uma torre até outra extremidade. Deve ter um sentido histórico relevante, por que a cena em si não tem nada demais. E aí, mais fantasias exuberantes e mais coisas para ver. Em resumo: é isso o carnaval de Veneza. Beleza para ser vista.
Mas, voltando ao ponto inicial desta conversa, retomando a festa soteropolitana como a outra referência, o carnaval de Veneza ocupa o espaço da rua como Salvador, mas é de fato, mais contemplativo, como o carioca. É como se percorrêssemos o circuito Sambódromo-Campo Grande para chegar na praça italiana. Nas ruas não têm música e nem bebidas alcoólicas. Não se dança, desfila. Não se canta, conversa. Não se beija, olha-se.

E o carnaval de Salvador? Aí é de fato um outro carnaval onde a organização é voltada para a participação, mesmo com toda a reprodução dos desníveis sociais presente nos demais dias do ano, onde conforto e as condições de participação na festa dependem do dinheiro que você pode e quer investir.

Mas, entre camarotes e pipocas - foliões que pulam sem pagar para sair dentro dos blocos baianos - a programação de todos está voltada para a realização das sensações corporais do toque, do paladar, do escutar, do rebolar, do misturar-se, do enlouquecer-se e não da distinção entre o que é apresentado e a platéia. Esta divisão não é a vedete do carnaval baiano, mesmo tendo alguns momentos para a contemplação.

A relação com o desfrute dos dias que antecedem a quaresma é vivida com mais avidez em Salvador. Em Veneza, o consumo de bebida alcoólica fica restrito aos bares. Em Salvador basta dar alguns passos que ao teu lado tem uma caixa de isopor com cerveja geladinha. Esta relação com o álcool deriva numa outra diferença de comportamento: o álcool potencializa a coragem para a efetivação dos desejos, então, vale a carne, o consumo, o beber, o comer que em muitas vezes não se restringe a ingestão de alimentos, pois, para quem quer, pode se estender para as esferas amorosas, mesmo que furtivas.

A conotação sexual mais evidente que encontrei em Veneza foi uma pessoa fantasiada de padre com um objeto fálico na mão, um pênis mesmo.
O caráter crítico, subversivo e transgressor dos tradicionais folguedos da Idade Média já não dá o ar da graça com muita freqüência nos dois carnavais. No de Salvador ainda se encontra raramente em blocos de protesto como o Mudança do Garcia, nos travestis e em algumas fantasias. Em Veneza, talvez, apareça na possibilidade de qualquer mortal poder ser nobre. Basta se vestir e sair nas ruas que a plebe fotografará suas poses. A transgressão, a irreverência e a subversão venezianas ficam no poder ser o que não é ou evidenciar o que cada um gostaria de ser, ao menos, momentaneamente. Já em Salvador é poder fazer boa parte do que se quer, sem muita culpa ou julgamentos.

Ao estar diante de comparações, corremos o risco de julgar para escolher. E algumas pessoas me fizeram esta proposição. Claro que o meu conhecimento do carnaval veneziano ainda é muito superficial. A minha experiência foi curta. Já no carnaval baiano sou bastante familiarizada. São dois pesos e duas medidas...
Acho que precisaria conhecer, viver mais. Se vocês quiserem fazer um novo investimento, eu ficaria muito contente em dividir o meu carnaval 2010 em dois lados: norte e sul do Equador, Salvador, Veneza... E aí quem sabe escolher meus carnavais. Com pecados e com juízo.

Ficha técnica.

O PECADO E O JUÍZO - Outros carnavais: Veneza e Salvador

Texto e fotos: Alexandra Dumas, doutoranda em Artes Cênicas - UFBA / Université Paris X.